Interações na rede de brincadeiras brasileiras

Por Luciana Portela

No universo das brincadeiras brasileiras, os sujeitos e os elementos implicados estão entrelaçados por dinâmicas interativas, nas quais os brincadores jogam entre si e transitam por diversas possibilidades de atuação: dançar, cantar, tocar instrumentos, criar versos, “botar figuras”, elaborar figurinos e adereços, dentre outras. Outro aspecto de inter-relação que há neste universo é a recorrência dos mesmos elementos (toadas, pontos, figuras, adereços, etc.) em variadas manifestações, nas quais muitas vezes são ressignificados. O aprendizado neste contexto também possui uma interatividade singular na qual se destaca a figura do mestre, que impulsiona e media a difusão do saber tradicional para os aprendizes, que são verdadeiros protagonistas na construção dos seus conhecimentos.

Queima da Lapinha, Mituaçu, 2019, Fotos: Thiago Nozi.

Durante a viagem que realizou pelo projeto Música do Brasil, entre 1998 e 1999, Hermano Vianna chegou a visitar 82 municípios, registrando festas populares, nas quais identificou uma rede de interações onde há um repertório de elementos que se repetem de modo singular em cada brincadeira. Ele afirma que nesta rede interbrincadeiras os brincadores dos diversos lugares, ao recombinarem os elementos das variadas manifestações, transforma-os e ressignifica-os; percebe-se, portanto, que estas performances não possuem fronteiras rígidas, mas sim, estão entrelaçadas e em transformação perene.

Zeca Ligiéro, convergindo com esse pensamento, afirma que no processo de formação cultural, constituiu-se como aspecto singular das performances brasileiras o contexto das interações entre diversos elementos, criando-se novas circunstâncias que reconfiguram os significados, não só pela escolha dos elementos, mas por suas combinações. Muitas vezes os performers/brincadores transformam as características originais da performance, no que se refere aos aspectos sagrados, princípios éticos e tradições comunitárias, mas preservam as motrizes culturais, que são dinâmicas interativas com os elementos fundamentais da tradição: dança, canto, batuque, materiais visuais, enredo, dentre outros.

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Para Vianna, pensar este espaço da brincadeira como uma rede, é também perceber a questão da identidade sob uma perspectiva diferente do conceito de “raízes”, o que é de fundamental importância, uma vez que, os discursos sobre a identidade precisam cada vez mais serem revistos, principalmente no que se refere à ótica das políticas públicas com relação ao conceito de cultura.

Considerando as características dessa rede de interações, Zeca Ligiéro questiona o conceito de matriz cultural para definir as diversas e complexas performances, que possuem uma complexidade de dinâmicas que tal conceito não abrange justamente por estar associado a ideia de raiz única. Ele aponta para a existência não apenas de uma matriz única, mas, de motrizes culturais; termo proposto para definir as práticas performativas afro-brasileiras que combinam vários elementos, como: a dança, o canto, a música, o figurino, os adereços, dentre outros, que estão presentes nas festas religiosas e em outras manifestações que surgiram a partir destas interações culturais que aconteceram entre índios, negros e ibéricos desde o processo de colonização.

Queima da Lapinha, Mituaçu, 2019, Fotos: Thiago Nozi.

O discurso de preservação da identidade nacional através da cultura popular foi uma ideia que norteou as políticas culturais, os movimentos estéticos e as produções artísticas do Brasil em vários momentos históricos. Durante a década de 1930 houve uma união de esforços entre as elites políticas e intelectuais do Brasil para empreender o projeto nacionalista que visava singularizar o país usando algumas referências da cultura popular. Neste período foram forjados símbolos nacionais, como o futebol e o samba, que eram usados como ferramentas para mobilizar as massas e divulgar, além da ideia de unidade nacional, os ideais da política getulista. Tratando as identidades culturais como raízes únicas e tendendo a estabilizá-las, a partir da Era Vargas foi fabricado um modelo (com criações de símbolos em diversas expressões culturais) de autenticidade nacional homogeneizada, fundamentado por um discurso que defende a hipótese da cultura popular como fonte de originalidade da nação brasileira.

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Sob influência do movimento nacionalista, foi ao longo do século XX que se avolumaram as discussões sobre cultura popular. Neste momento, o conceito de povo foi definido sob uma ótica purista e o termo arte foi considerado inadequado para definir a criação estética do povo, a qual recebeu, vários adjetivos, como: ingênua, popular, primitiva, etc.

Os agentes das manifestações populares nomeiam seus fazeres de brincadeiras e se definem, não como artistas, mas como brincadores ou brincantes, entretanto, no universo que se diz Arte Popular, considero que estão incluídas as brincadeiras tradicionais – manifestações/práticas performativas complexas, que envolvem diversos elementos e formas de expressões que os padrões estéticos hegemônicos não consideram como artes.  Este fato provoca impacto nas políticas públicas, que passam a privilegiar a arte tida como convencional em detrimento da arte tida como popular. No tocante a poética popular, por muito tempo, pesquisadores eruditos atribuíram anonimato às autorias das obras do povo, até que a credibilidade abalada de muitos folcloristas fez surgir um novo olhar e uma nova postura dos pesquisadores, problematizando a relação que a elite estabelece com a produção cultural popular e as questões referentes às autorias. No entanto, atualmente ainda é recorrente que pesquisadores e ou artistas lidem com os materiais coletados nas expressões populares compactuando com a ideia de associar o que vem do povo ao anonimato, apropriando-se das suas obras (muitas vezes negligenciando as questões de autorias), beneficiando-se, por meio dos fomentos públicos ou outros modos de comercialização, sem darem retornos justos às suas fontes inspiradoras.

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No tocante a migração das performances populares para a dança cênica brasileira, sempre implica transformações, como mudança de significação dos elementos e adaptações dos espaços. O lugar social que os agentes desta mudança ocupam e seus objetivos irão determinar os resultados destas transformações. O sujeito dessas mudanças tanto pode ser do povo quanto da elite e os discursos defendidos por estes agentes irão revelar suas ideologias e consciências diante da realidade.

REFERÊNCIAS:

ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! : corpo, dança e brincadeira no Cavalo-Marinho de Pernambuco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013.

______A transmissão de saberes no contexto das culturas populares e tradicionais. Rio Grande do Sul: Anais do 2º Encontro Nacional de Pesquisadores em Dança, 2011. Disponível em < http://www.portalanda.org.br/anaisarquivos/1-2011-19.pdf> Acesso em 20/04/2018.

PORTELA, Luciana Kalini Silva. IABI – Interações Artísticas Brincadas e Improvisadas: uma proposta de investigação artística e pedagógica a partir das expressões das culturas populares. João Pessoa: monografia (graduação) – UFPB/CCTA, 2018.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

VIANNA, Hermano, Org; Cunha, Manuela Carneiro da. Tradição da Mudança: A Rede das Festas Populares Brasileiras. Rio de Janeiro: artigo publicado na Revista do Patrimônio. ed. Patrimônio Imaterial e Biodiversidade. Nº 32, 2005. Disponível em < file:///C:/Users/Luciana/Downloads/tradicao_da_mudanca__a_rede_das_festas_populares_brasileiras%20(6).pdf> Acesso em 10/05/2018.

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