Por Zé Silva
Paraibanos, sertanejos, descendentes de africanos escravizados, negros e gênios na arte da improvisação. Mudando algumas palavras dessa descrição, poderia estar me referindo aos bluesman norte-americanos, que criaram a base de muitos ritmos que fazem sucesso no mainstream até hoje.
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Qual a importância e o legado deixado pela tríade negra do repente paraibano na história da música?
CHICA BARROSA
Chica Barrosa foi revolucionária devido à sua força no improviso, por quebrar paradigmas e também por improvisar com cantadores homens. A Paraíba é vanguarda na questão de mulheres à frente do seu tempo: Anaíde Beiriz, Margarida Maria Alves, Cecéu, Marinês (A rainha do xaxado), Zabé da Loca, Mestra Lenita, Mestra Lenira, Mestra Zezé (Mestra do Coco de Jacumã, in memória), Elizabeth Teixeira, Penha Cirandeira, Odete de Pilar, Mestra Tina, Mestra Ana, Minervina Ferreira, Maria da Soledade, Mestra Cida, Mestra Edite, etc. São alguns exemplos de mulheres que mesmo sem saber, fazem parte do legado deixado pela resistência de Chica Barrosa.
Francisca Maria da Conceição, conhecida como Chica Barrosa, nasceu na cidade de Pombal em 10 de julho de 1867; nessa época Pombal já tinha passado da condição de vila à cidade. Morreu na mesma cidade assassinada por um indivíduo de nome José Pedro da Silva, no dia 03 de outubro de 1916, ao que foi possível apurar sobre a morte da cantadora, a mesma discutiu com o assassino num baile, por questões de relacionamento amoroso, que resultou na sua morte a facadas.
A descrição feita por Câmara Cascudo faz de Chica Barrosa é a mesma de Rodrigues de Carvalho, que é a seguinte: grande cantadeira sertaneja, gabada como a primeira lutadora de seu sexo que enfrentou os nomes mais ilustres da cantoria. Era alta, negra, simpática, bebia e jogava como qualquer boêmio, e tinha voz regular. Paraibana, seus desafios correm mundo, despertando aplausos. O seu combate mais célebre foi com o cearense Manuel Martins de Oliveira, conhecido como Neco Martins, de São Gonçalo do Amarante. Embora vencida, improvisara magnificamente, deixando forte impressão entre os cantadores. Com Manoel Francisco em Pombal, bateu-se longamente, vencendo-o assim como ao cantador José Bandeira.
ZÉ LIMEIRA
Zé Limeira foi e é uma figura mitológica dentre inúmeras da Paraíba e do nordeste. O que mais chama atenção nesse cantador é a forma com que brincava com as palavras e os temas. No documentário “na estrada com Zé Limeira”, vários cantadores antigos são entrevistados e relatam a irreverência com que o “Surrealista dos pobres” cantava os temas nas pelejas contra outros repentistas. Qual o legado de Zé Limeira na música brasileira? Até um tempo atrás, cantador pra ser respeitado tinha que obrigatoriamente saber quem foi o “Poeta do absurdo”.
Vários cordéis, músicas, livros e estórias foram criadas ao redor dessa figura lendária. No livro “Zé Limeira, poeta do absurdo” o escritor paraibano Orlando Tejo relata várias histórias ou estórias sobre o cantador mitológico. Na boca miúda, muito se fala que Tejo criou vários versos que nunca foram realmente cantados por Zé Limeira. Mas o inegável é que Orlando Tejo foi responsável por reviver a lenda ao redor de Zé. Jackson do Pandeiro, Genival Lacerda, Siba e Zé Ramalho são alguns dos que carregam ou carregaram o DNA de Zé Limeira no fazer musical nordestino.
Era um negro analfabeto nascido no final do século XIX, em Teixeira (Paraíba), que morreu em 1954. O também poeta Orlando Tejo foi o grande responsável pelo registro da poesia de Zé Limeira, cantador bom de viola, voz potente, que deixava perdidos os que ousavam desafiá-lo, soltando palavras que não existiam em nenhum dicionário, mas que o povo achava bonitas e aplaudia. Mas não eram só palavras inexistentes que ele usava, eram situações inexistentes também, juntando personalidades e fatos célebres que se passaram em séculos muito diferentes. Jesus Cristo, Getúlio Vargas, Napoleão Bonaparte, Tomé de Souza e outros vultos históricos aparecem às vezes convivendo nos mesmos versos, às vezes em situações absurdas, como Jesus Cristo “sentando praça na polícia”. Orlando Tejo conheceu Zé Limeira e o ouviu pela primeira vez em 1940. Registrou seus versos e publicou o livro “Zé Limeira, poeta do absurdo”, cuja última edição, se não me engano, é do ano 2000. É possível encontrar esse livro em sebos, e quem tiver oportunidade não deve perder: adquira que vale a pena. Aliás, uma lembrança: muita gente acha que Zé Limeira não existiu, que é uma lenda criada por Orlando Tejo, pois não existem fotos dele.
A cidade onde Zé Limeira nasceu , Teixeira, foi o principal reduto de repentistas no século XIX e onde, segundo Tejo, a viola teria sido usada pela primeira como instrumento de cantoria lá pelos idos de 1840. Vivente até o ano de 1954, não há registro de sua voz. Fitas de pesquisadores que gravaram algumas de suas pelejas sumiram ou se deterioraram.
Segundo alguns registros sobre esse que se tornou o mais mitológico dos poetas brasileiros – chegava a andar 60 quilômetros por dia, para participar de desafios em quase todo o Nordeste. Onde aparecia, era recebido como verdadeiro pop star pelo povão, que virava a noite, nas festas e feiras, ouvindo e rindo com seus versos malucos, os quais eram divulgados e preservados à base do boca a boca.
INÁCIO DA CATINGUEIRA
Sem sobrenome, por ser filho do pai desconhecido, Inácio da Catingueira nasceu no dia 31 de julho de 1845. Sua mãe, uma negra africana de nome Catarina, só foi batizada em 1902, pelo bispo Dom Adauto, época em que contava com 118 anos de idade. Um estudioso do folclore popular do início do século, Rodrigues de Carvalho, colheu essa notícia, publicada no jornal O Comércio, de João Pessoa, numa edição de agosto de 1902: “D. Adauto, Bispo desta diocese, na sua excursão ao interior do Estado, acaba de fazer um batizamento célebre, o de uma velha africana, de 118 anos de idade, conhecida pelo nome de Catarina, confessou ser a mãe do famoso cantador popular Inácio da Catingueira”.
Inácio nasceu escravo, no sítio Marrecas, propriedade de Manoel Luiz de Abreu e depois também foi cativo, por herança, de Franscico Fidié Rodrigues de Sousa, genro do mesmo. No inventário, consta que Inácio foi avaliado em 1.200$000 (um conto e duzentos mil réis). A partilha foi procedida na residência do senhor Nicolau Lopes da Silva, em 13 de Fevereiro de 1875, oportunidade em que Inácio já contava com trinta anos e era considerado um imenso bem humano e provavelmente já conhecido como Inácio da Catingueira nas feiras do sertão de Piancó. No dia 22 de março, em seguida à partilha, o inventário foi homologado pelo juiz, Dr. João Tavares de Melo Cavalcante Filho. O histórico documento encerrou-se com distribuição das custas aos serventuários da justiça, em 21 de abril do mesmo ano.
Pouco se conhece de sua trajetória de vida na documentação escrita. Mas a tradição oral, de cantadores, violeiros, repentistas e histórias passadas através de gerações de feirantes atribui a Inácio da Catingueira grande capacidade rítmica no pandeiro e improviso nos versos cantados. O padre Manoel Otaviano escreveu uma nota biografia, publicada no Rio de Janeiro, em 1949, cujas palavras são referencias: “Inteligência que brilhou no cérebro de um escravo que, hoje, é maior e mais admirado do que o seu senhor. E só se fala do senhor por causa do seu escravo. Glorifica-se o escravo e do senhor não se fala”.
Créditos:
Vídeo 1: Mini documentário que o @meteorobrasil fez sobre a música de Emicida em homenagem a Inácio da Catingueira.
Vídeo 2: Emicida – Inácio da Catingueira. Música que @emicida gravou em homenagem a gênio paraibano.
Vídeo 3: Zé Ramalho – O apocalipse de Zé Limeira.
FONTES:
Chica Barrosa, “A rainha negra do repente”, autora: Irani Medeiros.
Zé Limeira, “Poeta do Absurdo”, autor: Orlando Tejo.
Inácio da Catingueira, “O Gênio Escravo”, autor: Luiz Nunes.
Documentário:
Na estrada com Zé Limeira, diretor: Douglas Machado.
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