Por Arthur Costa.
Na Paraíba, cavalo marinho é muito mais que peixe, é brincadeira, é música, poesia, dança e teatro, é uma forma de expressão homônima às existentes no estado vizinho, mas absolutamente única! Da forma existente aqui, só existe aqui e, em mais lugar nenhum! E mesmo por isso, o cavalo marinho é tão paraibano quanto de outros lugares! Apesar da evidente importância, a sociedade civil, bem como o estado, estão completamente alheios à sua existência (ou seria resistência?), parecem não valorizar, se interessar, tampouco respeitar a trajetória e a incrível força do brinquedo.
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Uma das primeiras menções que registram o termo “cavalo marinho” na Paraíba é talvez um áudio gravado na cidade de Areia, em 1938, pela Missão de Pesquisas Folclóricas (coordenada pelo escritor, músico e pesquisador Mário de Andrade) que registrou o canto como sendo pertencente a um bumba-meu-boi. A música é entoada pelas vozes de Manoel Martins da Silva, Manoel Martins Sobrinho, Manoel Rufino dos Santos e Octacílio Nazário, a toada cantada chama a figura do cavalo e o incentiva a dançar, tal qual o quase idêntico canto existente ainda hoje nas brincadeiras de cavalo marinho e boi de reis sediadas em João Pessoa, e até pouco tempo, na vizinha Bayeux, e registrado no CD “Cavalo Marinho e Boi de Reis na Paraíba”, com produção e direção musical de Agostinho Lima.
Ouça aqui outra versão da toada “Cavalo Marinho” registrada em 1997
Tradicionalmente brincado a noite inteira, esse folguedo é composto por uma série de elementos que o tornam extremamente rico, a música é feita por uma orquestra (diferente do termo “banco”, utilizado em Pernambuco), que apresenta instrumentação variada conforme o grupo. No cavalo marinho do Mestre Zequinha (em memória), por exemplo, usava-se a rabeca, o pandeiro e o triângulo, enquanto que no cavalo marinho do mestre João do Boi (em memória) usava-se o reco-reco, o pandeiro, o triângulo, o ganzá e o bandolim (em razão da falta da rabeca, que em outros tempos fora tocada pelo já falecido João da Rabeca), como explicou a mestra Tina, atual comandante do grupo, apesar disso, hoje já não se tem mais a presença do bandolim, persistindo os demais instrumentos.
A brincadeira também apresenta uma grande variedade de danças como a chamada contradança, a passagem dos arcos, o baião (de dois e de três) e as marchas. A burrinha, o bode, o cavalo, a ema, o boi, Mané Chorão, Empata Samba, “Véia” Dindinha e o Matuto da Goma são algumas das figuras e personagens apresentados no decorrer da festa em louvor dos santos reis do oriente.
O cavalo marinho encontrado ainda hoje em João Pessoa guarda muitas correspondências com a brincadeira do boi de reis sediada na mesma cidade (mas também, diferenças nas músicas cantadas e figuras utilizadas, como nos ensina a mestra Tina) e com os bois brincados no Rio Grande do Norte, no entanto, apesar da latente semelhança, traz elementos que não são encontrados em terras potiguares, como a dança dos arcos, esta por sua vez, comum aos grupos de cavalos marinhos “de pandeiro” presentes no estado de Pernambuco.
A partir de entrevistas colhidas com grandes mestres do cavalo marinho e do boi de reis paraibano, Agostinho Lima relata em artigo publicado nos ANAIS do V Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, que a brincadeira do boi de reis era muito frequente no brejo do estado, se estabelecendo fortemente na região metropolitana de João Pessoa a partir da migração de trabalhadores em busca de melhores condições de vida, se consolidando firmemente na cidade de Bayeux por um bom período. Seu texto aponta também que mestre Raul foi pioneiro na fundação de um grupo chamado de cavalo marinho nessa região, tendo trazido essa denominação da zona da mata sul da Paraíba.
José Hermínio Caeira foi rabequeiro e um dos mestres mais antigos e experientes nas brincadeiras do cavalo marinho e boi de reis. Em entrevista transcrita no livro “A Construção da Rabeca”, de João Nicodemos, Seu Hermínio explica que o primeiro cavalo marinho que brincou foi aos 15 anos, no grupo “Cove Fernandes”, relata ainda que fez e aprendeu a tocar rabeca sozinho aos 12 anos de idade. Estivemos uma única vez com o Mestre Zé Herminio durante uma apresentação em que ele estava tocando no Parque da Lagoa com um grupo de Bayeux, pudemos conversar com ele e ouvi-lo cantar a chamada do boi, demonstrar o tombo e explicar a forma com que a figura “Abana Fogo” brincava no terreiro. Ao longo de sua vida, ele brincou tanto em grupos de boi de reis, como de cavalo marinho, com mestres como Raul, Roseno, Dóia, Mané Luca, Paizinho, Zé Tavares, e com o lendário Gasosa. Mestre Herminio faleceu há poucos meses, neste ano de 2020, aos quase 100 anos de idade.
Atualmente, temos conhecimento de apenas dois cavalos marinhos plenamente atuantes na Paraíba, que são o Cavalo Marinho Infantil Sementes do Mestre João do Boi (João Pessoa) e o Cavalo Marinho Boi de Ouro do Mestre Araújo (Pedras de Fogo), além das cidades já mencionadas, há ainda importantes referências culturais para esse folguedo residindo em Bayeux. Agradecemos imensamente à querida Mestra Tina pelas informações e esclarecimentos prestados! Viva o cavalo marinho da Paraíba e seus brincadores!
Texto: Arthur Costa.
Fontes: Conversa com a Mestra Tina. Livro “A Construção da Rabeca”, de João Nicodemos. Artigo de Agostinho Lima: “Apontamentos Para um Esboço da História do Cavalo Marinho na Paraíba” publicado nos ANAIS do V Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia (Páginas: 19 a 28).
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